sexta-feira, setembro 25, 2009

APRESENTAÇÃO DO LIVRO "A TORMENTA DOS MOGADOURO NA INQUISIÇÃO DE LISBOA", PELO PROF. ANTÓNIO MARQUES DE ALMEIDA

Palavras de apresentação do livro de
Maria Fernanda Guimarães e de António Júlio Andrade

A tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa


Não venho, propriamente, fazer-vos a apresentação de um livro, mesmo tratando-se de um estudo de grande importância, levado a cabo por Maria Fernanda Guimarães e António Júlio Andrade. Ainda tenho para mim que, se a prova do pudim se faz comendo-o, em relação aos livros, melhor do que todas as palavras que possam ser ditas, o melhor é mesmo lê-los. E vão ver que este livro vale a pena, muito, ser lido. E sobretudo meditado, ou reflectido.
Tão só venho dar-vos conta da vivência que com ele senti, na minha condição de leitor. Este livro não é um livro sobre a Inquisição. Se o fosse, seria um entre muitos, ainda que bom, porque, desde Alexandre Herculano a historiografia portuguesa sobre a Inquisição não tem parado de crescer. Ao contrário, a historiografia sobre as comunidades judaicas portuguesas é, comparativamente, menor, e de valia científica muito desigual.
Mas este livro também não é, propriamente, ainda que fale deles, um livro sobre judeus, ou cristãos-novos. Se fosse, isso bastaria para o saudarmos, a par do livro do Doutor Jorge Martins, como mais valia da historiográfica judaica portuguesa.
Este livro é sobre a indignidade a que a Inquisição sujeitou sucessivas gerações. A fala sobre a família Mogadouro confronta-nos com a Inquisição, ela própria, uma irracionalidade tamanha que, quando alguns de nós, hoje, pensamos que compreendemos o que aconteceu, estamos segura e redondamente enganados.
Este livro é uma fala sobre a humilhação e a ofensa, sobre a devassa da intimidade e a violação das consciências num mundo anterior ao surgimento dos cidadãos.
Confronta-nos com um tempo longo que, deixados para trás os anos de construção da monarquia afonsina e perdidas as energias iniciais da dinastia de Avis, a nossa comunidade se afundou numa atmosfera de medo que durou, arredondando períodos, de cerca de 1536 até 1822.
Foram quase trezentos anos durante os quais a sociedade portuguesa na sua globalidade, e não apenas as comunidades judaicas, se afundou numa atmosfera mental em que o medo, a denúncia, a delação foram, como dizia António Vieira, dias de pão, de que não só os processos da Torre do Tombo nos dão conta, mas também os testemunhos de tempos posteriores.
Exemplos? Entre muitos possíveis, e citando uma antiga sabedoria, em Portugal, os homens do século XVII apenas foram senhores do que calaram e, seguramente escravos do que disseram. Anos, adiante, já no século XVIII, alguém que pertencia à elite cultural – Marques de Alorna -, dizia numa carta à filha, encerrada no Convento de Chelas: “a medo vivo, a medo escrevo, a medo falo”.
No plano social e das estruturas mentais, foi esta a herança que a Inquisição nos legou: a paralisia social, a abolia individual e colectiva, uma vez mais, o medo que têm caracterizado, no decurso de tempo, sucessivas gerações de nossos concidadãos. Faltam na historiografia portuguesa estudos sobre o medo, cujo papel tem interessado mais os nossos amigos sociólogos do que os historiadores. O medo, de que, em 1933, Franklin Roosevelt falava: “não temos nada a recear a não ser o próprio medo”.
Mas, vozes houve que não foram silenciadas, ou não se deixaram silenciar. A par de outras, a de António Vieira, cuja luta de mais de trinta anos foi um compromisso político com a reabilitação social dos judeus portugueses em diáspora, compromisso que João Lúcio de Azevedo considerou excessivo.
O jesuíta não deixará de recriminar o comportamento da Inquisição portuguesa, da qual dizia ser mais bem feroz do que a castelhana, mas tem em mente criar as condições para que os "homens da nação" voltem a Portugal: "porque o que os mercadores portugueses ganham nos reinos estranhos, lá fica, e o que os estranhos ganham no nosso, para lá vai". Nenhum monetarista diria melhor, porque, tanto quanto sei a propósito, nenhum disse tanto.
Tudo o que os judeus pretendem, ou quase tudo, já está no relatório de 1643 e na proposta a D. João IV a favor da Gente da nação, de 1646. Vieira visava uma mudança estrutural na sociedade portuguesa, e que passava por um clima que permitisse o regresso da “gente da nação” e do seu potencial financeiro.
Começara por defender melhor tratamento de toda a população cristã-nova, que consistia em;
• Abrir os cárceres do Santo Ofício, solicitando em Roma um perdão geral para todas as heresias até à data;
• Chamar ao Reino os Judeus foragidos, dando-lhes a segurança de não serem vexados por práticas ou convicções de teor dogmático;
• Isentar da pena de confisco os bens móveis empregados no comércio;
• Eliminar a divisão e a distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, quanto ao nome e quanto aos ofícios, e mesmo quanto às isenções.
• Finalmente, mudar os procedimentos processuais seguidos pela Inquisição nos casos de suspeição de hebraísmo, em sentido favorável aos eventuais réus. Defendia testemunhas à vista, um procedimento às claras, consoante o que se praticava nos tribunais civis (abertas e publicadas, como então se dizia).
Estas condições eram necessárias para que pudessem medrar as companhias de comércio, destinadas ao tráfico do Brasil e da Índia. Por esta via se lograria, seguramente, aumentar as rendas das alfândegas, e por via do incremento do comércio colonial, reforçar a capacidade de auto financiamento do Estado.
Di-lo muito cedo, logo em 1643: "Da sua vinda (dos Judeus) crescerão os direitos das alfândegas de maneira que eles bastam a sustentar os gastos da guerra, sem tributos nem opressões dos povos; pagar-se-ão os juros, as tenças, os salários a que as rendas reais hoje não chegam. Crescerá gente, que é uma parte do poder e estará o reino provido e abundante".
O tempo e a história, ou os dois, lhe deram razão.
Desse para onde desse, não havia futuro para as propostas de Vieira, e os textos de 1643 e de 1646 não produziram o efeito que desejava.
Trinta anos adiante (1671), quando se aproximava o fim desta luta em que, como em muitas outras, fora vencido, ainda dizia, em carta a Duarte Ribeiro de Macedo: "não poder haver maior cegueira que não querer ser rico e poderoso com o capital alheio".
Não deixará ainda de reclamar para os Judeus a segurança real e pontifícia por que sempre se batera, mas a frase é tão só um desabafo de vencido, quando está próximo o cair do pano sobre o último acto da vida.
António Sérgio disse ter sido a sua, uma das mais belas lutas pela liberdade de consciência travadas em Portugal.
Não querendo abusar mais da vossa paciência, dir-vos-ei, a terminar, que, embora pareça que não estive a falar do livro, procurei que as minhas palavras fossem o tabuleiro, onde se joga, ou jogou, o jogo da opressão e da resistência, tão bem documentado na memorização do drama da família Mogadouro, de que os autores nos dão conta no seu livro.
Servindo-se de uma escrita depurada, traçaram o percurso dramático de uma família. Talvez pareça pouco, não fora isso o paradigma que nos moldou e que ainda hoje, passados séculos, nos faz ser como somos. Mais grave ainda: nos faz ser aquilo que somos.
Obrigado Maria Fernanda e António Andrade por no-lo recordar. O vosso livro vai-nos dar muito que pensar.

A. Marques de Almeida
Lisboa, 24 de Setembro de 2009

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