LEITURA DRAMATIZADA DO PROCESSO INQUISITORIAL DE ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA
Santiago Alquimista, 18 de Outubro de 2006
Santiago Alquimista, 18 de Outubro de 2006
PADRE PREGADOR
Desgraçados homens! Mas por sua culpa desgraçados, que sempre se perderam por negativos. (Muito alto e poderoso Rei e Senhores nossos) Desgraçados homens! Mas por sua culpa desgraçados, que sempre se perderam por negativos. Parece fatalidade, mas é obstinação e perfídia. Antigamente, negaram a Deus os Israelitas, cansados de esperar por ele; agora, negam a Deus, esperando por outro sem cansar.
Veio, finalmente, ao mundo o Messias tão desejado, satisfez o Filho de Deus às esperanças dos homens, fazendo-se homem; e, quando parecia que os Judeus, cansados de tanto esperar, reconheceriam com grande alvoroço o seu Deus e o seu Messias, tornaram ao costume antigo de negar. Inventou a sua perfídia outro modo de negar a Deus. Negaram e disseram que não era este o Messias, mas outro por quem ainda esperam.
Confesso que à vista de tão indesculpável perfídia, quando me mandaram subir hoje a este lugar para desenganar este povo, pretendi fugir ao preceito, desculpando-me com as palavras de Jeremias em semelhante missão: «Ah, Senhor, que não sei falar neste caso e até me faltam as palavras». Não me foi admitida a escusa, como nem ao Profeta, porque o Sermão era de missão, em que tenho por intuito o pregar.
Aqui venho, pois, por obediência, a desenganar este povo, como antigamente Jeremias na sua missão. Mas que hei-de eu dizer a um povo tão obstinadamente negativo? Propor-lhe-ei a sem razão das suas mesmas negações, dando-lhe nos olhos com a sua maliciosa cegueira, para que, vendo a sua grande culpa, se resolvam a chorá-la. Ouvi, pois, infelizes relíquias do Judaísmo; ouvi, irmãos caríssimos, a quem deveras desejo a salvação; ouvi ponderar e convencer a repetida perfídia de vossas negações, não para vo-las lançar em rosto com desprezo, mas sim, para vo-las fazer confessar com arrependimento, que este é o fim com que o Senhor, pelo nosso Profeta, exagera tanto esta grande prevaricação de o haverdes negado.
Para vencer um gentio, deve fazer-se o tiro à cabeça: a razão que lhe pregámos ao entendimento é a pedra que se lhe prega na testa... Mas, para vencer um Judeu infiel, que sendo filho amado, quis ser traidor e inimigo, não à cabeça principalmente, mas ao peito se deve fazer o tiro, não com uma só, mas com muitas lanças se lhe deve tocar e penetrar o coração... para ver se deste modo se rompe o denso véu da sua obstinação e a densa nuvem da sua dureza.
O fogo do inferno em que irão cair se se não emendarem... Oh que poderosas três lanças, para que temendo ser trespassados delas, emendem as suas três negações, com que vos tem ofendido, negando vossa Divindade, negando vossa Vinda e negando vossa Pessoa!
Este tanto temor, e só este tanto temor, quisera eu, irmãos caríssimos, que vos movesse os corações a vos desdizer dos vossos erros e abraçar de todo o coração as verdades católicas. Nem outra cousa intenta este Santo Tribunal.
INQUISIDOR-MOR (para António)
António José da Silva, levantai-vos! (António levanta-se) Sois acusado de judaizar, juntamente com vossa mãe e outros familiares. Confessais vossas culpas?
ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA
Que delito fiz eu para que sinta o peso desta aspérrima cadeia nos horrores de um cárcere penoso? (para o Inquisidor-Mor) Não sei que confessar. Não conheço as culpas deque este tribunal me acusa…
INQUISIDOR-MOR Tragam-me a testemunha de acusação! (entra Leonor Gomes, a escrava denunciante)
Contai a este tribunal vossas denunciações de António.
LEONOR GOMES
O que se passou foi o que segue. Estavam todos juntos, António José, sua mãe, sua tia, seu irmão e sua cunhada, num sábado, a comemorar o Yom Kipur, o “Dia Grande” dos pertinazes judeus. Eu vi-os com estes olhos que a terra há-de comer!...
INQUISIDOR-MOR
Mas, tendes a certeza de que António José da Silva judaizava em casa com a família?
LEONOR GOMES
(Hesitante) Certeza, certeza… não!... (convictamente) Mas, que estaria ele a fazer, reunido em família, justamente no dia mais importante para os cães judeus?
INQUISIDOR-MOR
Não estais certa?!... (bruscamente) Levai-a para as masmorras dos Estaus! (levam-na)
(para António) Em nome de Cristo Nosso Senhor, confessai toda a verdade, para merecerdes a misericórdia deste Santo Tribunal.
ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA
Como hei-de confessar as culpas que não tenho?...
INQUISIDOR-MOR
(Irado) Metei-o a tormento!
(o carrasco arrasta António para junto do polé, o instrumento de tortura)
INQUISIDOR-MOR
Pelo lugar em que estais e instrumentos que nele vedes, podeis entender qual é a diligência que convosco está mandada fazer, pelo que e para o poderdes escusar, vos tornamos a admoestar, com muita caridade da parte de Cristo Nosso Senhor queirais confessar vossas culpas, para com isso alcançardes a misericórdia que nesta mesa se dá aos bons e verdadeiros confitentes.
ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA
Nada mais tenho a confessar, senão meus pecados a Deus no Dia do Juízo Final.
INQUISIDOR-MOR
(Para o público) Se o réu, no tratamento, morrer ou quebrar algum membro ou perder algum sentido, a culpa será sua, pois voluntariamente se expõe a este perigo, que pode evitar confessando suas culpas, e não será dos ministros do Santo Ofício que, fazendo justiça segundo os merecimentos de sua causa, o julgam a tormento.
(António é içado, ficando suspenso pelos braços)
INQUISIDOR-MOR
Em nome de Cristo Nosso Senhor, rogamos que confesseis vossas culpas, para assim alcançardes a misericórdia deste Santo Tribunal.
ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA
(Gemendo descontroladamente) Que quereis que confesse?... Eu confesso tudo o quiserdes!... Mas, por favor, parai com o tormento!...
INQUISIDOR-MOR
Para o carrasco) Parai o tormento!
ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA
(Olhando para cima) Oh Deus, se sois justo, como castigas tão tiranamente este mísero inocente?!
INQUISIDOR-MOR
(Proclamando a sentença) O réu, António José da Silva, comediógrafo desta Corte, acusado de convicto, negativo e relapso, vai condenado à pena de relaxado em carne, pelo que será subido a um mastro alto, aonde morrerá morte natural de garrote, e depois seu corpo será queimado e feito por fogo em pó e suas cinzas lançadas ao mar, para que dele não haja memória.
(António é queimado na fogueira)
PADRE PREGADOR
E no fogo com que ameaça os teimosos obstinados, lhes lembra o maior, e sem comparação maior e mais voraz incêndio do inferno a que vos conduz a sua teima. Não faz agora mais o Santo Tribunal da Fé que lembrar-vos outra vara com a sua vara... Outra vigia com a sua vigia... E outro fogo com o seu fogo... Para ver se o temor destas lanças com que a Justiça Divina vos ameaça, vos penetra agora os corações de forte, que, por uma vez, com verdadeiro e não fingido arrependimento se rendam e confessem em repetidas confissões que o Messias é Deus, já tem vindo e que é o nosso amabilíssimo Jesus, que morreu naquela Cruz por nos salvar.
E vós, a quem a vossa desgraça reduziu à extrema miséria em que vos vejo relaxada à justiça secular, vos lembro, que com tempo abrais os olhos ao desengano. Em breves horas vos vereis em outro Tribunal do Juízo Divino muito mais circunspecto e severo do em que ao presente estais.
(Os convidados são forçados a colocar na fogueira os livros (ou imagens), enquanto o padre secular lê nomes de intelectuais vitimados pela Inquisição)
PADRE PREGADOR
(Lê a lista de nomes)