Os judeus viveram um longo período de afirmação e crescimento em Portugal até que, em 1496, sob a pressão dos ventos adversos que sopravam forte da vizinha Espanha desde finais do século XIV, D. Manuel I não soube ou não quis resistir às exigências políticas espanholas, quando desposou a filha dos “Reis Católicos”. Pior do que a expulsão, ao contrário do que haviam feito os seus sogros, o nosso rei tentou a todo o custo impedir a saída dos judeus e, com eles, os seus cabedais, o seu saber, a sua competência, a sua experiência, a sua capacidade empreendedora, o que arruinaria o tecido sócio-económico do reino. Enganou-os, não cumpriu o seu próprio édito intolerante e forçou-os ao baptismo. Mas, mais do que o incomensurável drama humano que provocou numa boa parte da portugalidade, foi a incompatibilidade que introduziu na sociedade portuguesa. Os judeus, agora não-judeus, mas sempre tidos como tal, eram rejeitados, quer como judaizantes quer como espúrios, condenados à eterna mácula do “pérfido” sangue judaico, uma gota que fosse.
Verdadeiramente anti-semita, D. João III daria o golpe final na situação que seu pai criara, mas que oscilava o suficiente para vir em socorro das vítimas do massacre de 1506, decretando a extinção da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, vedando as inquirições às práticas judaicas, autorizando a sua saída do reino, não pedindo com a devida veemência o Santo Ofício para o Reino. Seria, efectivamente, seu filho, o incansável inimigo dos judeus, quem porfiaria nas pretensões intolerantes do estabelecimento da Inquisição, que compraria à Santa Sé, após mais de uma década de esforços, de corrupção activa e de imensos cabedais.
Importada que foi a expulsão, sem qualquer alteração substancial da relativa aceitação do judeu na sociedade portuguesa, apesar da existência de alguma animosidade, quiçá ampliada pelos infelizes acontecimentos no resto da península, a Inquisição viria alterar irreversivelmente a relação entre cristãos-novos e cristãos-velhos. Apesar do terror inquisitorial, a resistência cristã-nova e a persistência do culto judaico durante os séculos XVI a XVIII, pode ser atestada pelos próprios processos do “fero monstro”, pela conversão de inúmeros cristãos-novos portugueses que se exilam para poderem desenvolver as suas actividades económicas e assumir a sua verdadeira religião e pela espantosa emergência do criptojudaísmo durante as primeiras décadas do século XX.
Não partilhamos a (insuficientemente fundamentada) justificação da introdução da Inquisição como uma necessidade de regulação da relação entre cristãos e judeus, ou como uma tentativa de evitar o mal maior do antijudaísmo popular. Um dos argumentos mais utilizados para legitimar o Santo Ofício como uma resposta aceitável para a época, é o do massacre de 1506, que foi sanado por D. Manuel, que castigou exemplarmente os instigadores, comandados por dois frades dominicanos, que também foram executados por ordem régia. Mas, uma vez mais se comprovava assim que a acção tolerante dos nossos monarcas poderia ter evitado o crescendo do antijudaísmo encorajado e acicatado por clérigos intolerantes. Contudo, a política prosseguida por D. João III foi a grande responsável pela inviabilização da conciliação possível de judeus e cristãos, como acontecera no passado. A Inquisição não foi, pois, uma necessidade, um impulso natural, uma tentativa de evitar um mal maior. Bem pelo contrário, o Tribunal do Santo Ofício encarcerou o país nas teias da estreiteza anti-humanista da visão de um clero racista que empenhou o futuro de Portugal a todos os níveis.
Não obstante, não se pode deixar de assinalar que houve homens corajosos que se opuseram aos crimes inquisitoriais, sancionados por D. João III e todos os monarcas que lhe seguiram as pisadas. O primeiro grande filo-semita foi António Vieira, que, apesar de não ter sido bem sucedido nos seus intentos tolerantistas, acabaria por influenciar outras personalidades, como D. Luís da Cunha, Xavier de Oliveira, Ribeiro Sanches e Melo Freire, que retomariam as propostas de reforma dos métodos da Inquisição ou, mesmo, de aceitação do livre culto aos judeus. Quando Pombal legislou favoravelmente às pretensões judaicas, ironicamente, poria em prática as teses de um dos principais lutadores pela tolerância, o jesuíta António Vieira, membro da odiada Ordem a quem Sebastião José de Carvalho e Melo acusaria de responsável por todos os males do Reino.
Ceifada pela raiz a intolerância antijudaica, designadamente na sua expressão literária e na inaceitável discriminação persistente em pleno Século das Luzes, estava delineado o caminho para a emancipação judaica, que começaria pela criação de comunidades israelitas em Lisboa, Açores e Faro, veria consagrada tacitamente na lei a sua existência, embora como “colónias” estrangeiras, com a extinção da Inquisição, e alcançaria o reconhecimento legal após a implantação da República. Seria justamente durante o novo regime republicano que emergiriam à luz do dia das conservadoras terras interiores das Beiras e de Trás-os-Montes as comunidades marranas, esquecidas do judaísmo oficial, esquecidas do país, esquecidas do mundo, até esquecidas de si próprias. Novo abalo se sentiria nas hostes anti-semitas, que haviam sido emudecidas por Pombal desde o último quartel do século XVIII. Com efeito, se o século XIX não foi favorável ao crescimento dessas ideias entre nós, a proclamação da República e o resgate do criptojudaísmo veio proporcionar novos argumentos aos paladinos da intolerância, adversários da liberdade e da democracia. Barros Basto tornava-se assim o centro das atenções anti-semitas, enquanto se invocavam os Protocolos dos Sábios do Sião para confirmar as pretensões dominadoras do mundo e derruidoras do edifício católico por parte dos israelitas.
O criptojudaísmo, assolado por anti-semitas cada vez mais intervenientes e por judeus receosos da estabilidade, paulatina e sofridamente alcançada ao longo de mais de um século de dificuldades, de dissenções internas e de precauções externas, depois de um momento de euforia internacional, ver-se-ia remetido a um criptomarranismo forçado. O país nunca mais recuperaria a alma judaica, enterrada pela Inquisição e inviabilizada na sua forma única de sobrevivência: o marranismo.
Forçados a abjurar o judaísmo, perseguidos por nos termos tornado cristãos-novos à força, impossibilitados de regressar ao judaísmo oficial e incapazes de criar uma igreja marrana, tornámo-nos um povo com identidade, não apenas múltipla e miscigenada, mas difusa e sempre dominada por uma angustiante duplicidade, que nos tem impelido, ora para a exagerada euforia optimista, ora para o recorrente pessimismo de não termos assumido uma identidade, qualquer que fosse, mas uma identidade assente em inequívocas raízes de pertença, interiorizadas em todas as suas dimensões.
Foi este o mais perene dos muitos crimes da Inquisição, que os dois séculos posteriores à tri-centenária história da intolerância não conseguiram reconciliar no ser português que somos hoje. Na verdade, perdemos a nossa plena identidade a partir do início do século XVI e nunca mais a recuperámos até hoje. Por outras palavras, apesar da tão propalada presença judaica no ser português, ainda não somos capazes de assumir, no século XXI, a dimensão judaica da nossa identidade.
Isto é consequência da bem sucedida acção de desmantelamento da sociedade das três culturas – cristã, judaica e muçulmana – que Portugal esboçou na aurora da nacionalidade e se poderia ter aprofundado, não fora o infamante decreto de expulsão e o terrorista tribunal da Inquisição. Com efeito, as comunidades judaicas portuguesas crescem entre os séculos XII e XV, revelando um claro sinal de que a tolerância – aceitando-lhe a natureza contraditória –, assumida pela generalidade dos nossos monarcas até D. Manuel I, possibilitaram o enraizamento da dimensão judaica do ser português do século XVI. Mesmo o rei que decretou a expulsão de judeus e mouros sabia que isso seria – como, infelizmente, para eles e para nós, foi – uma catástrofe económica, social e cultural irreversível. Por isso, não deixou sair os judeus e baptizou-os à força, mesmo contra a vontade dos seus conselheiros.
A desestruturação mental que o baptismo forçado e a acção inquisitorial operaram na sociedade portuguesa, obliterou o (embora precário e desigual) convívio inter-religioso e intercultural que se estava a construir ainda antes da fundação da nacionalidade e se aprofundou durante os séculos XII a XV. Foi a intolerância católica que impediu o português de quinhentos de ser o que era de facto: um povo de raízes diversas. Essa amputação social, cultural e mental teria repercussões incomensuráveis em todos os domínios da vida portuguesa, acabando por atravessar a história dos judeus, dos marranos e dos cristãos (novos e velhos), que não mais puderam assumir-se em toda a plenitude do seu ser. Dos escolhos da(s) intolerância(s) emergiria um novo português, o português que todos nós somos um pouco: o marrano, que, quer queiramos ou não, nos ficou como uma marca identitária indelével.