JUDAÍSMO E ANTI-SEMITISMO NO SÉCULO XX
RESUMO
RESUMO
A realidade judaica portuguesa das primeiras décadas do século XX teve duas fortes vertentes, a Comunidade Israelita de Lisboa, que edificava a Sinagoga Shaaré Tikvá em 1904 e alcançava, finalmente, o estatuto legal durante a República em 1912 e a chamada “Obra do Resgate”, iniciada pela descoberta do criptojudaísmo nas Beiras e em Trás-os-Montes por Samuel Schwarz e dirigida pelo capitão Barros Basto.
Também o sionismo passou por Portugal, com os projectos de colonização judaica de Moçambique em 1903 e o de Angola em 1912/1913. Nenhum deles vingaria, apesar de Angola ter constituído recorrentemente hipótese mais séria que Moçambique, que pouco mais foi do que uma manobra de diversão de Theodor Herzl para pressionar os britânicos nos seus verdadeiros intentos sionistas.
Ao contrário do século XIX, as primeiras décadas do século XX português foram marcadas pela emergência de um anti-semitismo ideológico, protagonizado por correntes nacionalistas, designadamente o Integralismo Lusitano, que emergiu durante a I República e, justamente, contra ela. O seu arauto maior foi António Sardinha, que propunha que a “raça Lusa” se defendesse da miscigenação de que fora vítima pela influência negra e judaica, sugerindo, em prosa e em verso, a acção de uma nova Inquisição purificadora. Tal como no resto da Europa – e um pouco por todo o mundo –, os Protocolos dos Sábios do Sião tiveram a sua primeira tradução portuguesa em 1923 e alimentaram as hostes nacionalistas lusas com o mito da conspiração judaica mundial, na fase terminal da República. Só não teve mais projecção entre nós naquela época porque a comunidade judaica portuguesa era minúscula e discreta.
Foi este o anti-semitismo lusitano, à medida dos nossos nacionalistas, que, não obstante, não fizeram passar o ideário antijudaico, nem para o regime que se começou a desenhar em 1926 e se edificou, com Salazar, a partir de 1932, nem para a criação de movimentos anti-semitas ou a organização de acções pogromistas. Em consequência, os nossos racistas não seriam protagonistas de qualquer movimento e o catecismo anti-semita não vingaria, podendo apenas registar-se alguns episódios privados e irrelevantes ou manifestações patéticas e anacrónicas, como foi a reedição dos Protocolos em 1976, em plena democracia pós-25 de Abril.
Foi em pleno regime republicano que emergiram à luz do dia das conservadoras terras interiores das Beiras e de Trás-os-Montes as comunidades marranas, esquecidas do judaísmo oficial, esquecidas do país, esquecidas do mundo, esquecidas até de si próprias. Novo abalo se sentiria nas hostes anti-semitas, que haviam sido emudecidas por Pombal desde o último quartel do século XVIII. Com efeito, se o século XIX não foi favorável ao crescimento dessas ideias entre nós, a proclamação da República e o resgate do criptojudaísmo veio proporcionar novos argumentos aos paladinos da intolerância, adversários da liberdade e da democracia. Barros Basto tornava-se assim o centro das atenções anti-semitas, enquanto se invocavam os Protocolos dos Sábios do Sião para confirmar as judaicas pretensões dominadoras do mundo e derruidoras do edifício católico.
Num balanço final da história dos judeus em Portugal, podemos concluir que o país nunca mais recuperaria a alma judaica, enterrada pela Inquisição e inviabilizada na sua forma única de sobrevivência: o marranismo. Forçados a abjurar o judaísmo, perseguidos por nos termos tornado cristãos-novos à força, impossibilitados de regressar ao judaísmo oficial e incapazes de criar uma igreja marrana, tornámo-nos um povo com identidade, não apenas múltipla e miscigenada, mas difusa e sempre dominada por uma angustiante duplicidade, que nos tem impelido, ora para a exagerada euforia optimista, ora para o recorrente pessimismo de não termos assumido uma identidade, qualquer que fosse, mas uma identidade assente em inequívocas raízes de pertença, interiorizadas em todas as suas dimensões.
Foi este o mais perene dos muitos crimes da Inquisição, que os dois séculos posteriores à tri-centenária história da intolerância não conseguiram reconciliar no ser português que somos hoje. Na verdade, perdemos a nossa plena identidade a partir do início do século XVI e nunca mais a recuperámos até hoje. Por outras palavras, apesar da tão propalada presença judaica no ser português, ainda não somos capazes de assumir, no século XXI, a dimensão judaica da nossa identidade. Isto é consequência da bem sucedida acção de desmantelamento da sociedade das três culturas – cristã, judaica e muçulmana – que Portugal esboçou na aurora da nacionalidade e se poderia ter aprofundado, não fora o infamante decreto de expulsão e o terrorista tribunal da Inquisição.
A desestruturação mental que o baptismo forçado e a acção inquisitorial operaram na sociedade portuguesa, obliterou o convívio inter-religioso e intercultural que se estava a construir ainda antes da fundação da nacionalidade e se aprofundou durante os séculos XII a XV. Foi a intolerância católica que impediu o português de quinhentos de ser o que era, de facto: um povo de raízes diversas. Essa amputação social, cultural e mental teria repercussões incomensuráveis em todos os domínios da vida portuguesa, acabando por atravessar a história dos judeus, dos marranos e dos cristãos (novos e velhos), que não mais puderam assumir-se em toda a plenitude do seu ser. Dos escolhos da(s) intolerância(s) emergiria um novo português, o português que todos nós somos um pouco: o marrano, que, quer queiramos ou não, ficou-nos como uma marca indelével.
Também o sionismo passou por Portugal, com os projectos de colonização judaica de Moçambique em 1903 e o de Angola em 1912/1913. Nenhum deles vingaria, apesar de Angola ter constituído recorrentemente hipótese mais séria que Moçambique, que pouco mais foi do que uma manobra de diversão de Theodor Herzl para pressionar os britânicos nos seus verdadeiros intentos sionistas.
Ao contrário do século XIX, as primeiras décadas do século XX português foram marcadas pela emergência de um anti-semitismo ideológico, protagonizado por correntes nacionalistas, designadamente o Integralismo Lusitano, que emergiu durante a I República e, justamente, contra ela. O seu arauto maior foi António Sardinha, que propunha que a “raça Lusa” se defendesse da miscigenação de que fora vítima pela influência negra e judaica, sugerindo, em prosa e em verso, a acção de uma nova Inquisição purificadora. Tal como no resto da Europa – e um pouco por todo o mundo –, os Protocolos dos Sábios do Sião tiveram a sua primeira tradução portuguesa em 1923 e alimentaram as hostes nacionalistas lusas com o mito da conspiração judaica mundial, na fase terminal da República. Só não teve mais projecção entre nós naquela época porque a comunidade judaica portuguesa era minúscula e discreta.
Foi este o anti-semitismo lusitano, à medida dos nossos nacionalistas, que, não obstante, não fizeram passar o ideário antijudaico, nem para o regime que se começou a desenhar em 1926 e se edificou, com Salazar, a partir de 1932, nem para a criação de movimentos anti-semitas ou a organização de acções pogromistas. Em consequência, os nossos racistas não seriam protagonistas de qualquer movimento e o catecismo anti-semita não vingaria, podendo apenas registar-se alguns episódios privados e irrelevantes ou manifestações patéticas e anacrónicas, como foi a reedição dos Protocolos em 1976, em plena democracia pós-25 de Abril.
Foi em pleno regime republicano que emergiram à luz do dia das conservadoras terras interiores das Beiras e de Trás-os-Montes as comunidades marranas, esquecidas do judaísmo oficial, esquecidas do país, esquecidas do mundo, esquecidas até de si próprias. Novo abalo se sentiria nas hostes anti-semitas, que haviam sido emudecidas por Pombal desde o último quartel do século XVIII. Com efeito, se o século XIX não foi favorável ao crescimento dessas ideias entre nós, a proclamação da República e o resgate do criptojudaísmo veio proporcionar novos argumentos aos paladinos da intolerância, adversários da liberdade e da democracia. Barros Basto tornava-se assim o centro das atenções anti-semitas, enquanto se invocavam os Protocolos dos Sábios do Sião para confirmar as judaicas pretensões dominadoras do mundo e derruidoras do edifício católico.
Num balanço final da história dos judeus em Portugal, podemos concluir que o país nunca mais recuperaria a alma judaica, enterrada pela Inquisição e inviabilizada na sua forma única de sobrevivência: o marranismo. Forçados a abjurar o judaísmo, perseguidos por nos termos tornado cristãos-novos à força, impossibilitados de regressar ao judaísmo oficial e incapazes de criar uma igreja marrana, tornámo-nos um povo com identidade, não apenas múltipla e miscigenada, mas difusa e sempre dominada por uma angustiante duplicidade, que nos tem impelido, ora para a exagerada euforia optimista, ora para o recorrente pessimismo de não termos assumido uma identidade, qualquer que fosse, mas uma identidade assente em inequívocas raízes de pertença, interiorizadas em todas as suas dimensões.
Foi este o mais perene dos muitos crimes da Inquisição, que os dois séculos posteriores à tri-centenária história da intolerância não conseguiram reconciliar no ser português que somos hoje. Na verdade, perdemos a nossa plena identidade a partir do início do século XVI e nunca mais a recuperámos até hoje. Por outras palavras, apesar da tão propalada presença judaica no ser português, ainda não somos capazes de assumir, no século XXI, a dimensão judaica da nossa identidade. Isto é consequência da bem sucedida acção de desmantelamento da sociedade das três culturas – cristã, judaica e muçulmana – que Portugal esboçou na aurora da nacionalidade e se poderia ter aprofundado, não fora o infamante decreto de expulsão e o terrorista tribunal da Inquisição.
A desestruturação mental que o baptismo forçado e a acção inquisitorial operaram na sociedade portuguesa, obliterou o convívio inter-religioso e intercultural que se estava a construir ainda antes da fundação da nacionalidade e se aprofundou durante os séculos XII a XV. Foi a intolerância católica que impediu o português de quinhentos de ser o que era, de facto: um povo de raízes diversas. Essa amputação social, cultural e mental teria repercussões incomensuráveis em todos os domínios da vida portuguesa, acabando por atravessar a história dos judeus, dos marranos e dos cristãos (novos e velhos), que não mais puderam assumir-se em toda a plenitude do seu ser. Dos escolhos da(s) intolerância(s) emergiria um novo português, o português que todos nós somos um pouco: o marrano, que, quer queiramos ou não, ficou-nos como uma marca indelével.